Papai, eu quero ser físico

Pais e mães ficam desconcertados ouvindo essa declaração de seu filho prestes a fazer o Enem. “Coitado, vai acabar sendo professor de escola pública na periferia. E o salário, ó…”.

Ser professor de escola pública é uma profissão digna, embora sofrida e mal remunerada. Mas, formar-se em Física, Química, Biologia ou Matemática não é, necessariamente, um passo inescapável para o magistério no ensino médio. O jovem pode seguir uma carreira de pesquisador, fazer doutoramento e, se demonstrar talento, poderá trabalhar em qualquer universidade no Brasil ou no exterior. A profissão de cientista tem essa vantagem: é uma atividade de âmbito internacional. Diferentemente das carreiras mais localizadas, como a Medicina ou a Engenharia, a tribo do pesquisador se espalha pelo mundo todo. É um bônus que pode compensar o salário ainda limitado, embora suficiente para manter a família.

Hoje em dia, porém, estão surgindo novas oportunidades para aqueles que decidem por carreiras científicas. No mundo atual, regido pela alta tecnologia, quem sabe matemática, física, biologia e outras ciências pode se candidatar a um bom emprego no campo empresarial ou criar sua própria empresa. Exemplos desse tipo começam a ser comuns. Vou citar um, de um rapaz que iniciou sua formação no Laboratório de Instrumentação Científica (LIE) do Departamento de Física da Universidade Federal do Ceará (UFC), no tempo em que eu trabalhava por lá.

Giovâny Gomes, aluno egresso da Escola Técnica Federal do Ceará, foi bolsista do Centro Nacional de Desenvolcimento Científico e Tecnológico (CNPq) no LIE, acompanhando e colaborando na manutenção de lasers, espectrômetros e outros equipamentos sofisticados de pesquisa. Ao mesmo tempo, aprendia a fazer interfaces entre esses aparelhos e os microcomputadores que ainda eram novidade na época e cursava Engenharia Elétrica na UFC. Durante sua passagem como bolsista do LIE, aprendeu os truques que são a rotina de um laboratório de pesquisa e também a redigir e apresentar seus trabalhos em congressos.

Depois de formado, continuou trabalhando no LIE até que surgiu uma oportunidade que mudou sua vida profissional. Nessa época, fim dos anos 1980, os oftalmologistas cearenses começavam a utilizar seus primeiros lasers para fins cirúrgicos. Eram equipamentos caros e de manutenção difícil. Quando algum deles dava pane, era necessário trazer técnicos do Sul ou mesmo do exterior. Os médicos procuraram os físicos da UFC que usavam lasers para pesquisa em espalhamento de luz. Um dos pesquisadores consultados, o professor Erivan Melo, sugeriu que o grupo de médicos patrocinasse a ida de um técnico de bom nível para estagiar nas empresas fabricantes dos equipamentos, na Europa e nos EUA. O escolhido foi Giovâny, por sua experiência no LIE e por dominar o inglês.

No exterior, ele fez treinamento com o Excimer Laser e vários outros equipamentos para Cirurgia e Diagnóstico na área oftalmológica. Logo tornou-se técnico especialista na manutenção desses equipamentos. Em 1996, decidiu deixar a universidade, pois não dava mais para compatibilizar suas atividades na UFC com o atendimento da nova demanda profissional. Até hoje, continua trabalhando na manutenção de equipamentos oftalmológicos cuja complexidade aumenta continuamente.

Em 2002, Giovâny começou a se interessar pela área de rastreamento de veículos, que usava a tecnologia do sistema GPS, ainda uma novidade naquele tempo. Desenvolveu um software capaz de rastrear um veículo, fornecendo dados de quilometragem, velocidade, tempo de parada em determinado ponto e visualização em mapa do trajeto percorrido. Vendo o potencial de negócio da iniciativa criou, junto com amigos, a Kaboo Tecnologia, que já tem 11 anos de experiência vitoriosa. Com a expansão da Internet, desenvolveu ferramentas mais elaboradas que são utilizadas em frotas de distribuição de gás em vários estados do País. Esse trabalho foi agraciado, em 2012, com o Prêmio GLP de Inovação Tecnológica. Nas palavras do próprio empreendedor: “Foi muito gratificante fazer parte deste evento, pois me deu a oportunidade de voltar aos meus tempos acadêmicos, produzindo trabalhos científicos, só que desta vez aplicados ao mundo dos negócios.”

Casos como o de Giovâny, antes muito raros, estão começando a surgir com mais frequência. Uma boa formação acadêmica nas áreas científicas pode ser a porta mais natural para o desenvolvimento de empresas de inovação ou para trabalhos altamente especializados, com bons salários. Não desestimule seu filho, ou filha, se demonstrarem vontade de seguir uma carreira científica. O ambiente de pesquisa é estimulante e uma descoberta original é sempre muito gratificante. Nada se compara à alegria de alcançar um novo resultado na pesquisa, desbravando um terreno ainda desconhecido do conhecimento e publicando seus achados em revistas de grande impacto. Por outro lado, se seu filho preferir mesmo ensinar nas escolas públicas, o treinamento científico fará dele um professor diferenciado que saberá transmitir melhor o conhecimento e despertar o entusiasmo de seus estudantes.

Mamãe, quero ser matemática
Se a família reage mal quando um filho diz que quer ser físico, imagine se a princesinha da casa anunciar que quer estudar matemática. Isso é lá profissão de uma moça de família! Além do conceito pré-estabelecido de que mulheres não têm aptidão para os números.

Durante algum tempo, fui o coordenador da Olimpíada Brasileira de Física no Ceará e reparei que o número de meninas nessas competições era (e ainda é) bem menor que o de meninos. No entanto, se elas perdiam numericamente, não ficavam atrás na qualidade do desempenho.
Frequentemente, até se davam melhor que eles, pois eram mais tranquilas, já que não sofriam a mesma cobrança. Algumas chegaram a concorrer em olimpíadas internacionais e ganharam medalhas. Uma das que conheci era de uma família de médicos e demonstrava grande talento em matemática.

Os pais e irmãos queriam que ela seguisse a Medicina e até tentaram desestimular o interesse da moça pelas ciências exatas. Mesmo assim, ela conseguiu várias medalhas, inclusive em competições internacionais. No fim, a insistência dos familiares prevaleceu e ela fez vestibular para Medicina. Passou muito bem, é claro, e hoje provavelmente é uma médica competente. Mas, talvez, o Brasil tenha perdido uma grande matemática, quiçá no nível de nosso Artur Ávila, que ganhou recentemente a medalha Fields.

Autor: José Evangelista Moreira

Fonte: Jornal O Povo (http://www.opovo.com.br/app/colunas/aquitemciencia/2014/10/11/noticiaaquitemciencia,3328901/papai-eu-quero-ser-fisico.shtml)

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One Response to Papai, eu quero ser físico

  1. Chris Santos says:

    Em um mundo que preza mais pelo quanto você ganha do que pelas ideias que você possui, ler essa matéria é reconfortante. Sou formado em Direito, mais pelo possível retorno financeiro do que por vocação; todavia sempre fui um apaixonado pela ciência, sobretudo a Física. Infelizmente nunca fui estimulado nem pelos meus pais, nem pelos professores, a prosseguir nesse meu sonho, principalmente por causa desse pensamento moderno de que mais vale ter dinheiro do que satisfazer suas vontades e sonhos pessoais. Hoje, passados todos esses anos, trabalho e ganho meu dinheiro; porém não me sinto realizado. Sinto que alguma coisa ficou perdida lá atrás, na minha adolescência, na minha infância curiosa. Portanto, pais e professores, não deixem que suas vontaded pessoais e expectativas sobrepujem a vontade de seus filhos e alunos. Se ele quer ser físico, matemático, químico ou biólogo, sendo pesquisador ou professor, alimentem essa ideia, estimule-os a continuar perseguindo seus sonhos e desejos. Nunca os permita pensar que o dinheiro pode comprar sua felicidade, pois não pode! Esse é o meu recado para a futura geração de cientistas, professores e pesquisadored deste Brasil.