Samaricas parteiras

Como diria o poeta e declamador Jessier Quirino,“derna” que Adão era cadete nasce menino nesse mundão de meu deus! As etapas ainda são as mesmas: a concepção, a gestação e, por fim, a parturição. Os métodos para cada etapa é que mudaram com o tempo. A concepção pode ocorrer da natural cópula entre macho e fêmea à inseminação artificial, isto é, pela inserção manual do sêmen no interior do útero para ali ocorrer a fecundação. A concepção também pode se dar pela fertilização in vitro, ou seja, a fecundação acontece fora do organismo materno e, posteriormente, o embrião é implantado no útero, gerando o famoso “bebê de proveta”.

 

A gestação também mudou e o período biológico de 38 semanas para o feto se desenvolver até o nascimento pode não necessariamente ocorrer no útero da futura mamãe. Basta vasculhar os noticiários mais recentes para perceber a intensidade dessas mudanças. Por exemplo, dois brasileiros viajaram à Tailândia para alugar uma barriga. Isso mesmo, barriga de aluguel! Uma tailandesa recebeu implantados embriões concebidos em laboratório a partir da junção dos espermatozoides desses dois mineiros de Governador Valadares com óvulos obtidos de uma mulher sul-africana, tudo realizado por especialistas israelenses. Ao fim desta aventura internacional, o casal voltou ao Brasil com duas filhas nos braços.

 

Para a terceira etapa, a parturição, existem também vários métodos, naturais ou cirurgicamente induzidos. Normalmente, o organismo feminino está preparado para executar essa missão que se divide em fases: contrações uterinas, dilatação do colo do útero, expulsão do feto, liberação da placenta e interrupção da hemorragia após o descolamento de material intrauterino. Como um dos momentos mais importantes para as mães, ao todo, o parto pode durar horas. Pode até ser eterno, quer dizer, eternizado. Cito aqui o “causo” de Zé Dantas, musicalmente eternizado por Luiz Gonzaga. Para quem não conhece a música, podemos considerá-la como homenagem às parteiras.

 

Jovita, mulher de Capitão Balbino Gironde, dito Barbino, subitamente passou a sentir dor-de-menino e, após o primeiro gemido, veio a ordem: “Lula! Vá ligeiro buscar Samarica Parteira!” Ele prontamente assim o fez montado em sua égua e, depois de muitas cancelas, piriricos tico-ticos e patatecos teco-tecos, Lula chegou ao seu destino: “Samarica, ooooh, Samarica Parteeeeira!” Apesar da resposta lamuriosa pela noite avançada, “Essas hora, Lula?”, os dois retornaram rapidamente à Fazenda Baraúna para acudir a mulher do capitão. Lá, a equipe de Samarica estava completa e as comadres Tota, Gerolina, Toinha e Zefa acunhavam na reza a São Raimundo para apressar a chegada do herdeiro e diminuir o aparente sofrimento da parturiente.

 

É possível que Jovita estivesse deitada em um sofredouro, espécie de cama de couro na qual algumas gestantes das zonas rurais passavam os primeiros momentos do parto. Ao chegar,
Samarica vestiu indumentárias limpas, amarrou um pano na cabeça, acendeu um incenso, pediu uma lasca de fumo de Arapiraca e a deu para Jovita mascar, hábito atualmente não recomendável às parturientes, mas já relatado em estudos científicos realizados em regiões rurais de outras partes do mundo, desde países asiáticos a nórdicos, obviamente não com o produto arapiraquense.

 

E o parto foi se sucedendo.

“Ai, Samarica, que dô!”

 

“É assim mermo, minha fi’a, aproveite a dô… Capitão Barbino, tem cibola do Cabrobró?” “Ai Samarica! Cebola não, que eu espirro.” “Pois é prá espirrar mesmo minha fi’a, ajuda! Dê uma garrafa pr’ela soprá, dê!”

 

O diálogo retrata procedimento cientificamente conhecido como manobra de Valsalva, descrita pelo italiano Antonio Maria Valsalva, médico do fim do século XVII. Realizamos essa manobra frequentemente em atividades fisiológicas, por exemplo, ao tossir, espirrar, defecar ou mesmo ao levantar coisas pesadas. Já notaram que nesses esforços corriqueiros normalmente bloqueamos a expiração e o ar não consegue momentaneamente deixar os pulmões? Pois é, isso serve para aumentar a pressão no tórax que, combinada com a contração da musculatura na barriga da parturiente, resulta em maior pressão no abdômen, desejável no momento do parto. Daí a ideia de provocar espirros com a cebola, irritante para as vias aéreas. A garrafa, por sua vez, simularia o fechamento da glote e o aprisionamento do ar nos pulmões durante o esforço.

 

Para o parto, Samarica deve ter posicionado Jovita adequadamente a fim de aparar o rebento. Como recurso, as parteiras usavam antigos bancos de parto, alguns confeccionados em madeira em formato de V para garantir a melhor ergonomia possível para a época. Há relatos de que serviam a esse propósito desde tempos medievais, e esse utensílio acabou aportando por essas bandas nordestinas durante a colonização. O parto de Jovita só se resolveu quando Samarica considerou ineficazes as preces a São Raimundo e apelou a outro: “Sant’ Antoin pequenino, mansadô de burro brabo, fazei nascer esse menino, com mil e seiscentos diabo!” Aí, o pequeno Bastião nasceu e capitão Barbino disparou um tiro de espingarda de lascar o cano que foi ouvido em redor de 7 léguas.

 

Se alguém tiver interesse no tema, pode visitar o Museu do Parto localizado na Maternidade-Escola Assis Chateaubriand, em Fortaleza. Apesar de pequeno, possui um exemplar de sofredouro, vários bancos de parto, inclusive um inusitado banco feito com uma vértebra de baleia antigamente usado pelas parteiras da praia do Cumbuco.

Estas são apenas algumas das peças do pequeno museu coordenado pela professora Silvia Bomfim Hyppolito, em tributo ao professor Galba Araújo, um dos nomes mais importantes da Ginecologia e Obstetrícia cearenses. O museu retrata o papel das queridas parteiras em tempos outros e a evolução para o parto humanizado.

 

NOTA: Esse texto é nossa homenagem ao Dia das Mães e foi escrito pelo professor Pedro Magalhães, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC).

 

O link para o Museu do Parto é: http://www.meac.ufc.br/site.php?pag=158

 

Coluna Aqui tem ciência – Jornal O Povo

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/aquitemciencia/2015/05/09/noticiaaquitemciencia,3434471/samaricas-parteiras.shtml

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