Um alien dentro de nós

No filme de Ridley Scott, uma criatura cheia de ácido irrompe de dentro do abdômen de um dos personagens. O bicho se dava bem lá dentro, pois, em se tratando de acidez, o estômago humano parece uma bateria de carro. Suas paredes internas estão sempre repletas de ácido clorídrico extremamente corrosivo. No século passado, quando uma pessoa sofria de dores estomacais crônicas, dizia-se que esse desconforto era fruto de um aumento dessa acidez causado pelos suspeitos usuais, o álcool, o cigarro e as preocupações – o famoso estresse. Ninguém imaginava que algum organismo conseguisse sobreviver nesse ambiente inóspito e tivesse alguma relação com os problemas gástricos mais comuns.

Pois, em 1983, os australianos Barry Marshall e Robin Warren mostraram que existe pelo menos uma bactéria que se dá bem em nosso estômago, a Helicobacter pylori, uma danadinha em forma de hélice – daí seu nome -, encontrada na barriga de pelo menos metade da população do planeta. Os cientistas australianos demonstraram que a H. pylori é a principal responsável pela gastrite e pode levar ao surgimento de úlceras. Ainda pior, pode também levar ao câncer de estômago. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a H. pylori um risco para o estômago no mesmo nível que o cigarro para o pulmão. Por seu trabalho, Marshall e Warren ganharam o prêmio Nobel de medicina em 2005.

Antes dessas descobertas, a gastrite e a úlcera gástrica eram tratadas com antiácidos, muito deles contendo metais pesados, como o bismuto e o antimônio. Hoje se sabe que a eficácia desses medicamentos decorre de serem tóxicos a H. pylori . Mas, o melhor tratamento consiste mesmo no uso de antibióticos que eliminem a presença da bactéria no estômago.

Como seria de se esperar, a H. pylori é mais prevalente onde as condições sanitárias não são ideais. Além disso, a bactéria se apresenta em vários tipos genéticos, sendo alguns mais prejudicais que outros. É importante saber diagnosticar com precisão se o paciente está realmente infectado e qual é o tipo de H. pylori que causa seus problemas gástricos. Isso é ainda mais relevante quando se trata de crianças.

A professora Lúcia Libanêz Bessa, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), e seu grupo de pesquisa, com a colaboração da professora Dulciene de Queiroz, da Universidade Federal de Minas Gerais, vêm estudando sistematicamente a presença da H. pylori em nossas comunidades e já sabem que a bactéria é encontrada em cerca de 80% da população de Fortaleza, tanto nos adultos que procuram o médico por apresentar sintomas como nos indivíduos assintomáticos. Além disso, a bactéria também é encontrada com muita frequência em crianças. Uma análise do tipo genético dessas bactérias, feita pelo grupo, mostrou que elas pertencem às cepas mais virulentas, que estão associadas com doenças como a úlcera péptica e o câncer gástrico.

O método mais usual de testar a presença e a atuação da bactéria em um paciente é a endoscopia. Uma fibra óptica é introduzida através da boca no estômago do paciente, produzindo imagens das paredes internas e possibilitando a retirada de material para biópsia. Quem já fez esse exame, sabe bem que ele não é dos mais agradáveis. O grupo da professora Lúcia está usando um método bem mais simpático para uso com crianças de nossas comunidades. A técnica tem também a vantagem de não demandar um equipamento impraticável de ser levado aos locais onde os pesquisadores querem obter suas amostras. Trata-se do Enteroteste, uma técnica semelhante a que já é usada para detectar infestação de vermes. O paciente ingere uma cápsula gelatinosa parecida com aquelas de complemento alimentar. A cápsula está acoplada a um fio que vai junto. Depois de 40 minutos, o fio é puxado trazendo consigo uma amostra do suco gástrico. A partir desse material é realizada a cultura e a extração do DNA da H. pylori, possibilitando o sequenciamento e a identificação de seu tipo genético.

Esse estudo é importante para orientar as políticas de saúde pública na prevenção e no tratamento das doenças associadas a H. pylori. Conhecer melhor a presença e os efeitos da H. pylori em nosso meio é fundamental e essa é a meta do grupo de pesquisa da UFC que já está nesse trabalho há vários anos.

H. pylori boa é H. pylori morta – será mesmo?

A H. pylori já estava presente no estômago de nossos antepassados que saíram da África para conquistar o planeta há mais de 100.000 anos. Sendo uma companheira tão antiga de nossa espécie, surge a questão: por que não foi eliminada pela seleção natural? Provavelmente, porque ela não é tão maléfica quanto se diz. Se a H. pylori causasse grande mortalidade antes do fim do período de reprodução de seus hospedeiros, certamente, já teria sido erradicada pela seleção natural. Como isso não se deu, podemos suspeitar de algum tipo de co-evolução entre elas e nós.

O médico americano Martin Blaser sugere que a H. pylori talvez não seja apenas vilã. Como sabemos hoje, algumas bactérias são fundamentais para nossa sobrevivência, ajudando na digestão, reforçando o sistema imunológico e prevenindo outras infecções mais graves. Quem sabe, a H. pylori também tem alguma função benéfica em nossos organismos. Se esse for o caso, sua erradicação total com o uso de antibióticos pode acabar causando problemas inesperados. É consenso, hoje em dia, que o excesso de antibióticos pode estar contribuindo para o aumento na incidência de doenças como a asma e a obesidade. Aliás, basta lembrar que os antibióticos são usados pelos criadores de frangos não para eliminar doenças, mas para engordá-los mais rapidamente.

A H. pylori é, comprovadamente, perigosa, mas, antes de tentar eliminá-la por completo, vale a pena compreender melhor seu papel em nossos corpos. Nesse aspecto, pesquisas como essas desenvolvidas na UFC podem contribuir significativamente na busca das melhores ações relativas a essas infecções e suas consequências.

“Conhecer melhor os efeitos da H. pylori em nosso meio é fundamental e essa é a meta do grupo de pesquisa da UFC”

Autor: José Evangelista

Fonte: Jornal O Povo (http://www.opovo.com.br/app/colunas/aquitemciencia/2014/09/13/noticiaaquitemciencia,3313418/um-alien-dentro-de-nos.shtml)

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