Os engolidores de fogo

“Primeiro você me azucrina, me entorta a cabeça, me bota na boca um gosto amargo de fel”. A frase é de uma música, sucesso dos anos 1970, mas retrata algo que incomoda muita gente, as pessoas que padecem da doença do refluxo. Essa enfermidade é comum, pois afeta de 10% a 20% da população. Frequentemente, alguém reclama por aí: eu tenho refluxo! Mas, o que é mesmo isso? Em geral, todos nós temos refluxo quando o conteúdo líquido presente no estômago reflui para o esôfago, num trajeto contrário ao habitual. Isso pode acontecer várias vezes ao dia sem causar nenhum dano ou qualquer incômodo.

O refluxo gastresofágico possui conteúdo geralmente ácido, próprio do estômago, mas também pode trazer conteúdo de gás e bile, dando trela ao “gosto amargo de fel” quando é intenso e atinge regiões mais altas do trato digestivo como a garganta, chegando a provocar tosse. Nesse nível, as pessoas experimentam várias sensações desagradáveis, sendo a mais comum a azia, sensação de queimação que sobe do estômago goela acima, parecendo que o indivíduo engoliu fogo. Quando não tratada, pode evoluir para outras complicações mais sérias.

O ser humano está biologicamente preparado para evitar os malefícios do refluxo. Dispomos de especial estrutura muscular na junção entre o esôfago e o estômago para prevenir o retorno para o primeiro do conteúdo líquido e gasoso encontrado no segundo. A primeira dessas estruturas é um esfíncter, que permanece fechado na maior parte do tempo, uma espécie de anel muscular que fecha a comunicação direta entre esôfago e estômago, mas que relaxa normalmente quando engolimos uma porção de alimento, permitindo assim que a digestão possa ocorrer no estômago.

Mas só o esfíncter não garante totalmente a perfeita vedação dessa abertura desejada nos momentos de jejum. O diafragma, músculo que separa o tórax do abdômen, também participa dessa barreira antirrefluxo. O diafragma é mais conhecido por ajudar a respiração, movendo para baixo os pulmões que se enchem de ar na inspiração. Uma parte desse músculo, chamada de diafragma crural, abraça o esôfago dando-lhe um arrodeio logo acima do estômago, reforçando a função contrátil do esfíncter esofagiano em sua tarefa de conter o refluxo. Se essa barreira muscular não funciona, a doença do refluxo pode aparecer.

Por dominarem o diafragma com peculiar destreza, os cantores de ópera sujeitam esse músculo a esforço extremo, alcançando assim alto desempenho artístico. Como tudo demais é veneno, pesquisadores europeus já demonstraram que cantores líricos e músicos de instrumentos de sopro, como os flautistas e clarinetistas, apresentam mais sintomas de refluxo gastresofágico que indivíduos com outras ocupações. Por outro lado, professores de canto, menos exigidos na qualidade de voz em comparação aos cantores líricos nas apresentações para grandes públicos, expõem o diafragma a menor esforço e, por causa disso, apresentam menos sintomas de refluxo. Isso ilustra como o diafragma pode fazer parte da barreira antirrefluxo e nos leva a crer que o recrutamento rotineiro e exaustivo dele pode dificultar seu papel na proteção do esôfago.

Sabedores disso, um grupo de pesquisadores cearenses liderado pelo professor Miguel Souza, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), decidiu provar ser possível obter melhora dos sintomas do refluxo por meio de exercícios programados para treinar esse músculo na medida certa. Eles submeteram um grupo de pacientes diagnosticados com a doença a uma série de exercícios diafragmáticos inspiratórios específicos. Durante o treinamento, quase tudo era controlado: as pressões monitoradas, a duração registrada, a intensidade adequada, as repetições previstas, mas não a sonoridade. Razão porque, em determinados momentos, os vizinhos do professor Miguel escutavam sons vindos da sala ao lado que, aos desavisados, pareciam vir de uma suposta seleção para figurantes de um filme de Tarzan, o rei das selvas.

Os resultados foram animadores. Após o treinamento, os pacientes melhoraram em todos os parâmetros técnicos na avaliação da barreira antirrefluxo. Mais importante, os escores da sensação de azia e de regurgitação do conteúdo gástrico para o esôfago também foram menores, sugerindo assim que o treinamento realmente melhora a eficiência mecânica diafragmática. O estudo foi publicado na revista científica da Sociedade de Fisiologia dos Estados Unidos, um dos mais respeitados periódicos científicos nessa área.

Atualmente, a doença do refluxo pode ser tratada com medicamentos, mas oxalá esse estudo proporcione opção adicional para ajudar os que padecem dessa doença; será possível oferecer um protocolo de fisioterapia como forma de “dar um grau” na função muscular da barreira antirrefluxo? Isso poderia corrigir a provável atrofia do diafragma, que pode vir a ser uma das causas do enfraquecimento da barreira antirrefluxo, mas essas questões ainda estão por ser desvendadas. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos. E, já que falamos no Tarzan, não sabemos se ele sofria ou não de refluxo em seu ofício, mas quem sabe essa contribuição cearense seja a primeira evidência científica que valide o famoso ditado “quem canta seus males espanta”.

Autor: Pedro Magalhães

Fonte: Jornal O Povo (http://www.opovo.com.br/app/colunas/aquitemciencia/2014/09/27/noticiaaquitemciencia,3320662/os-engolidores-de-fogo.shtml)

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